terça-feira, 20 de janeiro de 2009

rita

Tudo começou aos nove anos, com um tocar de telefone. Estava a pequena Maria a brincar com as suas bonecas quando o telefone toca. ‘Maria vai atender, a mamã está a fazer o jantar.’ Maria larga as bonecas e vai a correr, mete-se em bicos dos pés, estica-se ao máximo e atende. Eis se não quando do outro lado dizem: ‘já está.’ Maria retorqui-o: ‘Já está?’ E a voz do outro lado: ‘a avó já morreu.’ E o telefone desliga-se. Maria tinha agora um grande desafio, tinha que dar a noticia ao resto da família. A angústia, a dor, a mágoa, o medo invadiram aquele pequeno coração. Num sopro ganhou coragem. Abriu a porta do quarto do Miguel, seu irmão e disse: ‘Miguel a avó morreu.’ Ele, quase perplexo disse: ‘eu aviso os pais’. Depressa toda a gente se reuniu na sala, o pai de Maria chorava enquanto a sua mãe o acariciava. Miguel estava a tentar distrair-se com a televisão. Maria, Maria apenas corria feita barata tonta da sala para a cozinha, agarrando com as duas mãos o seu pequeno coração. Já nem sabia se ria se chorava, tal era o seu estado de amargura. Foi a primeira vez que remexeram o seu âmago. Ninguém tinha apetite. Maria não foi ao funeral, os pais acharam melhor pouparem-na desta vez. Mas ir ao cemitério até lhe fazia bem. A sua avó morreu precisamente a dez dias de ela fazer dez anos. Por ela não fazia festa, mas seus pais quiseram fazer-lhe uma surpresa. Nesse dia sorriu. Desde essa altura que Maria tem problemas para dormir, dá voltas e voltas na cama. As noites começaram a ser um tormento. Deixou de ser uma criança normal, mas uma criança que sofria em silencio. Os anos passaram, Maria foi crescendo ainda mais. A vida sempre lhe reservou grandes surpresas. Num ano o seu pai apanhou uma pneumonia, ninguém sabia o que ele teria. Então os seus dias eram casa-escola-hospital-casa. Foram lá passados os seus anos, o Natal, o Ano Novo. Isto porque o seu pai tinha alta e passado uma semana voltava para o hospital, até descobrirem o que se passava. Maria crescera mais uma vez. Ver um pai no hospital, comemorar lá dias festivos, ver a mãe imensas vezes a chorar fechada na casa de banho. Não é fácil. Maria nunca chorava, em frente à mãe, ao pai, na escola ou com os amigos. Para eles, Maria nunca chorava. Mas ninguém sabe o que esta vida traumatizou os seus anos seguintes. Houve outro ano em que o pai teve um AVC e a mãe teve de ser operada. As cicatrizes dos outros anos acabavam de sarar e tinha que vir mais. Maria não era pejorativa, mas o acumular de situações deixavam as coisas num estado demasiado exacerbado. Maria não aguentava ver a mãe sofrer, ver o pai doente e ver o irmão a não ligar a tudo isto. Mas Maria não chorava. Os pais decidiram mudar de casa, tentar dar outro rumo à sua vida. Então aos quinze anos Maria mudou-se para uma pacata vila. A sua casa tinha jardim e não tinha tantas escadas, assim a qualidade de vida do seu pai aumentava. As coisas pareciam estar bem, mas o pior acontece aqui. Maria era uma criança que carregava muito sofrimento, com um coração amachucado como uma simples folha de papel. No inicio, conheceu novas pessoas, travou amizades, a escola até corria bem. Com o passar do tempo as pessoas desiludiam-na cada vez mais, mentiam, diziam lhe coisas horríveis. As coisas em casa também ficaram piores, as sequelas das doenças do pai e o seu desemprego tiravam-no do sério. Então as discussões começavam a ser o pão de todos os dias. Consequentemente, a pequena Maria apanhava com tudo. Por não se conformar, por não ficar calada, por querer estabilizar e não conseguir. Respondia ao pai, quando ele discutia com a mãe punha-se no meio, mandava-os parar. Então já não bastava o seu âmago amargurado, passaram a soesssões físicas. Ao ponto de a mãe e o pai a mandarem contra a parede, contra o chão. E o irmão ficava sempre ao longe calado, sem poder fazer nada. Depois de lhe baterem, não a deixavam ir à escola. Não queriam que ela abri se a boca. Era assim, Maria sofria em silêncio. No ano seguinte, as coisas pioravam mais. Nenhuma medicação controlava o seu pai e apesar de ter encontrado emprego havia meses que não lhe pagavam. Os amigos de Maria também tinham os seus problemas e encontravam nela um bode expiatório e um ponto de abrigo. Maria nunca negava nada aos amigos. Havia dias em que Maria apanhava de manhã, insistia para ir para a escola, a mãe para não a ouvir levava-a. Conduzia a chorar. Maria sabia que a mãe não estava bem com tudo isto, mas limpava as lágrimas e ia aprender, tentando por o seu maior sorriso. Nesses dias, às vezes os seus amigos estavam tão mal que lhe caíam nos braços em busca de compreensão, derramavam mares de sal. Maria ficava firme, era leal a eles. Maria aguentava tudo. Mas houve um dia que não aguentou mais, estava tudo insuportável. Estava com a sua melhor amiga e só teve tempo de dizer:’ Joana, não aguento mais, sinto que vou explodir, não tenho força.’ E caiu, caiu nos braços de Joana, chorou desalmadamente, a camisola de Joana ficou encharcada. Joana chorou, encorajou-a e levou a para casa. Maria sozinha não conseguia andar. Abriu a porta de casa, correu para o quarto e chorou, como nunca. A mãe apanhou-a e tirou lhe tudo o que a pudesse ligar aos amigos. Depois bateu-lhe e fechou-a no quarto:’ põe-te bem’ disse ela. Maria automutilou-se a primeira vez, a dor era demasiada e ninguém percebia isso. Ela só queria carinho, atenção. O sangue escorria no pulso, com a dor física o seu coração ficava aliviado. Nunca mais sorriu para ninguém, não conseguia comer nem dormir. O suicídio estava numa das suas opções. A mãe tratava-a como escrava do lar. Tinha de fazer tudo, tratar da roupa, da comida, das limpezas. Pobre Maria, não tinha a vida fácil. As automutilações começaram a ser mais frequentes, via a Joana da varanda. E um dia quis se atirar e acabar com tudo, trancou-se no quarto e tinha a certeza que não merecia tudo isto e não merecia viver. A morte para ela era uma libertação. Joana sentiu que algo não estava bem, telefone desligado, nunca mais a tinha visto por aí, visto que estavam de férias. Então como os carros não estavam à porta de sua casa, saltou o portão e entrou pela garagem. Gritou por Maria, bateu, bateu na porta até Maria abrir. E Maria abriu, teve um momento de racionalidade ali. Abriu e envolveu Joana em seus braços. Joana era o seu pilar. Depois de duas depressões, e de automutilações, de noites mal dormidas, de pesadelos, de lágrimas. Maria sorriu, fez novos amigos e as coisas em casa estabilizavam aos poucos. A sua mãe não deixava o pai bater-lhe e tentava percebe-la. O seu pai aos poucos ia ficando mais calmo. O seu irmão mais atento e mais seu amigo. Maria no meio de isto tudo cresceu imenso, ganhou o gosto por ler, visto que passava as noites em claro e os livros a faziam sonhar. E decidiu que no futuro queria compreender a complexidade do ser humano e o mundo. Para isso empenhou-se nos estudos. Deu imenso de si aos outros, o que no fundo lhe fazia bem. E descobriu métodos para relaxar. Maria aprendeu a sorrir de novo. Eu sou Maria. Maria é a rapariga do autocarro, a que anda à chuva, aquela que se cruza connosco no supermercado, na rua. Toda a gente é um pouco de Maria. Um ser que só precisa de um pouco de tempo, carinho e compreensão.

2 comentários:

David Pimenta disse...

é mesmo a tua história, fogo.
estou sem palavras Ri Ri.

Telmo Martins disse...

É bom saber expressar tanta amargura em pouco texto, poucos o conseguem fazer.
Gostei.